Por Ivo José Triches e José Luiz Ames
No cerne deste modelo democrático atual está a ideia do sufrágio universal. O sufrágio universal (direito de todos votar e ser votado), na maneira como funciona em nosso meio, faz com que impere na política a mesma lógica competitiva que domina no mercado. A democracia passa a ser vista como um “mercado”, isto é, um mecanismo institucional para eliminar os mais fracos e estabelecer os mais competentes na luta competitiva pelos votos e o poder. O papel central nesta competição está destinado à liderança política.
Democracia delegativa
Este modelo de democracia é conhecido como “democracia delegativa”. Há outros autores que preferem utilizar o conceito Democracia Representativa, para referir-se a esse modelo político que surge a partir da modernidade. Mas o que significa esse modelo?
A democracia delegativaé fortemente individualista. Pressupõe-se que os eleitores elejam, independentemente de suas identidades e afiliações, a pessoa mais capacitada para cuidar dos destinos da coletividade. As eleições nas democracias delegativas são um processo extremamente emocional e que envolve altas apostas: vários candidatos competem entre si para saber quem será o ganhador da delegação para governar sem quaisquer outras restrições, a não ser aquelas impostas pelas relações de poder.
A democracia delegativa, como vemos, transfere (“delega”) ao eleito o direito e a responsabilidade pelos destinos da coletividade. Os eleitores (“delegadores”) limitam sua participação política à eleição. Os cidadãos se comportam em relação aos candidatos como consumidores: escolhem o “produto” que melhor responde aos seus desejos. A propaganda eleitoral contribui decisivamente para a mercantilização da política. As lideranças apresentadas como candidatos recebem uma produção similar àquela que é feita para vender qualquer produto comercial: o consumidor (eleitor) compra (vota) pela embalagem. Por isso, o argumento de que o “mais capaz” é eleito não procede. Por causa da propaganda, o eleitor não tem como saber quem é o mais preparado.
Democracia deliberativa
A exclusão do cidadão do processo de tomada de decisão política é, portanto, inerente ao modelo da democracia delegativa ou representativa. Essa constatação reacendeu o debate atual em torno da teoria da democracia deliberativa que, obviamente, coloca profundamente em questão o modelo da representação política. Alguns autores também denominam esse modelo como de democracia direta. Com efeito, a ideia da representação política implica em que os representantes discutem entre si e deliberam. Não existe debate com a sociedade para formar a opinião e a vontade pública.
A teoria da democracia deliberativa, ao contrário, consiste na ideia segundo a qual, a opinião e vontade pública resultam do debate estabelecido pelos próprios cidadãos e não por seus representantes eleitos, tão somente.
A concepção deliberativa da democracia é uma postura contrária ao elitismo. Neste sentido, opõe-se à ideia que concebe a classe política como responsável pelo governo e para a qual o exercício da cidadania se limita à eleição periódica dos representantes. Segundo a concepção deliberativa da democracia, a opinião e a vontade pública devem resultar do debate contínuo e continuado dos próprios cidadãos.
A democracia deliberativa distingue entre o âmbito do mercado e o da política. Enquanto no domínio do mercado o indivíduo pode escolher unicamente em vista de sua vantagem pessoal, no campo político as escolhas devem levar em consideração as demais pessoas. Por essa razão, democracia pressupõe debate e possibilidade de rever decisões. A decisão sobre aquilo que é mais adequado à coletividade não tem como ser estabelecido por nenhum instrumento científico e, muito menos, por uma liderança, ainda que eleita pela maioria. Somente o consenso que resulta da argumentação, do confronto de opiniões, é capaz de determiná-lo.
Outro aspecto da democracia deliberativa é que nela são levadas em consideração, como unidades fundamentais, as pessoas e não os grupos. Isso implica em privilegiar a defesa dos direitos das pessoas sobre a maximização dos benefícios de grupos de interesse e de facções. Por fim, a democracia deliberativa considera que o sistema político de tomada de decisões deve basear-se, primordialmente, na discussão. A importância da discussão pode ser vista em vários pontos: previne erros; ajuda a impedir a adoção de decisões parciais; educa para a cidadania na medida em que exercita a capacidade de argumentar e de aceitar posições opostas.
A teoria da democracia deliberativa não pode ser confundida com o modelo da democracia direta dos antigos. Como aquele na Atenas do séc. V a.C. Lá apenas os homens podiam participar e dentre eles, somente aqueles que tinham posses. Notoriamente, na democracia direta grega ela foi possível porque a unidadepolítica era pequena. A democracia deliberativa, ao contrário, é uma teoria que toma em consideração a realidade dos grandes Estados modernos. Insiste na ideia de que o cidadão precisa ter garantido espaços através dos quais possa ocorrer o confronto das opiniões. Neste sentido, rompe com o modelo representativo, que se apropriou do direito de determinar o que é vontade pública.
Em grande medida as novas forças produtivas em curso estão facultando a existência dessa prática de democracia. No Brasil a experiência da prática do Orçamento Participativo que ocorreu em Porto Alegre na década de noventa do século passado, contou com a ajuda da Internet. O ciberespaço te se transformado numa poderosa ferramenta do controle dos gastos públicos, de um meio para chamar os cidadãos para prática da democracia deliberativa. Assim nossa participação no cuidado da coisa pública (res publica) tem ocorrido de forma mais direta, sem termos que contar sempre com nossos representantes que delegamos para esse fim.
Cidadania e Estado democrático
A democracia pressupõe cidadãos iguais, e a noção de cidadania não se entende sem um sistema de direitos. Assim como a ideia de cidadania alude a indivíduos que participam como atores da vida política e social, a função da democracia é assegurar direitos fundamentais para todos. Isso nos evidencia o paradoxo: vivemos em sociedades democráticas com cidadãos nominais, isto é, cidadãos incompletos que não podem exercer plenamente os atributos correspondentes a esta condição.
Sem dúvida, não se pode reduzir a crise da cidadania à esfera da exclusão social. Antes, o que está em crise é o sentido mesmo da cidadania moderna como sistema de integração. Na verdade, é preciso explorar outra concepção, mais inclusiva, de cidadania: cidadania como um conjunto de direitos e práticas participativas exercidas tanto no plano do Estado como da sociedade civil e que confere aos indivíduos uma pertença real como membros da comunidade política. A ideia de cidadania não deve se restringir à pertença formal de um indivíduo a um Estado, mas também a sua pertença a múltiplas formas de interação social. Em outras palavras, o conceito de cidadania não pode esgotar-se na figura portadora de direitos exercidos frente ao Estado, e sim que pode integrar as práticas que se desenvolvem no interior de uma vasta rede de associações que, operando desde a sociedade civil, é capaz de contribuir para a perfeição da ordem coletiva. O cidadão se reconhece como membro de uma coletividade política não somente por seu vínculo de nascimento em uma nação, mas também pela prática de todos os dias, em sua conexão com o curso cotidiano das coisas.
É possível, pois, pensar numa dimensão de cidadania autônoma, ou independente, em relação ao Estado. A preocupação pelos “assuntos de todos” (ou respublica) não é redutível à ideia de “interesse geral” supostamente representada pelo Estado. Antes, a defesa do interesse geral é um problema de todos e não apenas do Estado. Os assuntos comuns se difundem também pela sociedade civil, para constituir um lugar comum, um espaço público, no qual os cidadãos que abandonam seu refúgio da vida privada se reúnem para interrogar e controlar o poder e construir vínculos sociais solidários.
Considerando o que dissemos, a noção de cidadania precisa ser redefinida para não se identificar somente com o Estado, com um sistema de direitos e deveres, pois os problemas da “coisa comum” não se discutem somente no âmbito do Parlamento, mas também na mídia e na sociedade civil de modo geral. A seguridade social, por exemplo, já não é unicamente um problema do Estado, embora continue sendo. É também um problema que diz respeito a todos os cidadãos que, através de diversos mecanismos de cooperação, podem tornar possível que a sociedade civil compartilhe com o Estado a responsabilidade da solidariedade social.
Esta redefinição da noção de cidadania realça (e torna consciente) as atividades que o indivíduo desempenha como cidadão da sociedade civil. Esta noção de cidadania alude, portanto, a uma dupla atribuição: ao Estado e à sociedade civil. No primeiro caso, o indivíduo é membro de um corpo político-institucional que garante seus direitos políticos, civis e sociais. No segundo, o indivíduo é membro de um espaço público associativo que requer práticas de auto-organização coletivas desde as quais pode reforçar e estender sua condição de cidadão. Em ambos os casos o cidadão é membro da mesma comunidade. Em suma, o cidadão do Estado não cancela o cidadão da sociedade civil, nem vice-versa.
Palavras Finais
Refletirmos sobre possibilidade de uma nova forma de democracia mais humanizada foi nossa intenção. Se nós conquistaremos a hegemonia da prática da Democracia Deliberação num futuro próximo ainda é uma incógnita. Contudo, ela pode vir a acontecer. Para tanto cada um ao seu modo pode contribuir para isso à medida que tenha uma participação mais efetiva na vida da coletividade.
Superarmos o vazio ético que uma das características da pós-modernidade é uma das condições para isso.
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